A Excelência Não Pedida: Uma Ode à Competência Silenciosa

Conheço poucas pessoas tão competentes e tão relutantes em aceitar o próprio brilho. Por anos, o grande plano de carreira da minha esposa não era um título ou uma cadeira de liderança, mas sim ter dinheiro para comprar um carro ou fazer uma viagem para a Disney. O que acontece quando o seu único foco é a excelência, e o sistema corporativo te força a subir, mesmo que você não queira? Esta é a história da minha esposa, uma ode à competência silenciosa.

Sem Big Plan: Da USP ao Palio com Ar-Condicionado

Sendo irmã do meio, ela cresceu em uma casa de classe média. Seus pais não tinham faculdade, mas, dentro das possibilidades, investiram na educação dos três filhos. Nada muito maluco: estudou numa escola particular de bairro, sempre foi boa aluna. Pagou o próprio cursinho, entrou e se formou na USP.

Não havia um big plan de carreira sendo traçado. Na verdade, ela aprendeu a não fazer planos de muito longo prazo, sabe-se lá por quê. Seu objetivo era o que gente normal quer: ganhar dinheiro, sair da casa dos pais e, quem sabe, construir uma família. O trabalho era apenas o meio de conquistar essa independência. E se era o meio, que fosse feito com compromisso e excelência.


Ah… e ela queria muito, mas muito mesmo, ir para a Disney.

Ainda durante a faculdade, um conhecido a ajudou a conseguir um estágio. Ela ficou cinco anos por lá. Foi efetivada. Aprendeu, se divertiu e juntou dinheiro para comprar um carro, enquanto encarava o percurso “Santana → Itaim → Butantã (USP) → Santana” de ônibus.

Com seu diploma de Letras, conseguiu vaga de revisora de textos em uma editora católica pequena. Seu trabalho era de tal qualidade e organização que se tornou rapidamente um porto seguro, com entregas sempre elogiadas. O sucesso era resultado do foco na tarefa, e não na política.

A rotina de transporte ficou mais fácil, pois a editora era acessível de metrô, a faculdade tinha acabado e o dinheiro do carro seguiu guardado. Nesse período, ela começou a namorar. Ele tinha um Palio com ar-condicionado e sempre a buscava em casa nos fins de semana. Com esse contexto, ela ficou com dó de gastar o dinheiro com o carro e continuou juntando, sabe-se lá para quê.

Na editora, o trabalho rápido, com qualidade e organizado, abriu a oportunidade de acelerar a vida financeira dela: freelas. Logo, comprou um notebook, uma capa rosa e uma escrivaninha pequena para ter mais liberdade.

E assim ela financiou seu sonho até então. Foi com o namorado conhecer o Mickey. Organizada como sempre foi, ela contratou as coisas por fora e, com o mesmo dinheiro do pacote inicial, eles conseguiram estender a viagem alguns dias para Nova Iorque.

A Competência Fala Mais Alto que a Política

Uns dois anos depois, uma editora maior abriu um processo seletivo grande contratando revisores. Entrou. O salário e os benefícios melhoraram.

Mesmo no meio de gente muito boa, ela se destacava não só pelas entregas de qualidade, mas pela organização e visão do processo completo da publicação de um livro. Nas férias da chefe, ela assumia rotinas do time, sempre pisando em ovos, pois não se sentia preparada. Mas fazia tão bem que, sem querer, se tornou a principal candidata a substituir a líder prestes a se aposentar. A hesitação era um indicador do seu senso de responsabilidade.

Nesse meio tempo, o namorado do Palio virou marido. E os freelas financiaram mais algumas viagens para Disney e para a Europa. Tudo ia bem, ela tinha um emprego estável. O marido também estava num bom momento profissional.

Foi nessa fase que eles reformaram o primeiro apartamento. Veio o cachorro, e no ano seguinte decidiram tentar engravidar.

Crise e Recomeço: A Força da Reputação

E foi exatamente nesse período que o mundo dela virou de ponta-cabeça.

Em um movimento sem muita explicação, ela foi demitida. Nunca pela qualidade da entrega, mas porque sua consistência e seriedade geraram conflitos em um ambiente mais político. Diferente do marido, que mais adiante viveria longas turbulências profissionais, ela se recolocou em pouquíssimo tempo. Sua reputação de entregar muito e pedir pouco era um deal fácil para qualquer empresa.

Mais uma vez, o escopo do seu trabalho mudou um pouco. Passou a construir e entregar projetos especiais dentro de uma faculdade de educação, o Instituto Singularidades. Continuou excelente como sempre, se tornando rapidamente uma referência técnica e uma influência positiva, dedicada a garantir que os projetos fossem impecáveis e que todos à sua volta crescessem com a entrega.

Minimalismo Profissional, Ética Imbatível

Mas foram só alguns meses de paz e “normalidade” até que duas coisas – uma maravilhosa e outra terrível – acontecessem: sua primeira gravidez e a pandemia da COVID-19.

Ainda durante a gestação, na sabedoria de quem entende que o tempo ao lado do filho vale mais do que tudo, ela se planejou para pedir demissão no seu retorno da licença-maternidade. Para isso, juntou dinheiro e fortaleceu relações de trabalho freelancer, traçando o plano de ficar em casa pelo primeiro ano de vida do filho. Tinha tudo para adotar o minimalismo profissional, fazendo só o essencial.

Mas sua ética de não deixar as pessoas na mão não permitiu que ela recuasse. Era um momento desafiador para a empresa, que reagia como podia à pandemia. Uma mudança de gestão há poucas semanas do nascimento do bebê parecia selar o destino dela: pedir demissão na volta ou, com sorte, até ser demitida.

Nos meses que se sucederam, o foco foi 100% nos primeiros meses da criança. Mas no instituto, o trabalho dela continuava aparecendo e sua ausência era sentida. A nova gestora, reconhecendo o potencial, a pediu para ficar e, de maneira muito sensível, a ajudou a conciliar os primeiros meses de retorno com uma jornada remota e mais alguns benefícios.


Nesse período, o casal reformou o segundo apartamento, um maior para acomodar o bebê recém-chegado.

Ela não sabia muito bem o que estava fazendo de certo para conseguir todas essas “molezas”. O marido sabia. Ele via a competência inegável dela sendo finalmente alavancada, mesmo que ela seguisse cheia de dúvidas, não se achando pronta. Foi assim que no ano seguinte ela foi promovida a coordenadora e segui neste posto por quase dois anos.

O Salto para a ANBIMA e o Custo Pessoal

O instituto seguiu, a chefe saiu, as coisas foram mudando e ela engravidou do segundo filho.

Mesmo plano: juntar dinheiro e pedir demissão depois da licença-maternidade e ficar um ano com o bebê. Só faltou combinar com a vida.

Ela pediu sim demissão no dia do retorno da licença, mas não para continuar cuidando do seu filho mais novo, e sim para assumir o posto de projetista sênior para tocar projetos de educação financeira. Com o primeiro bônus em vista, ela finalmente comprou seu próprio carro.

Até hoje ela se arrepende de algumas ramificações familiares dessa decisão, por não poder ficar o tempo que queria 100% dedicada ao filho mais novo. Mas a confiança que faltou a ela nesse momento, sobrava ao marido. Tanto em relação à capacidade dela de seguir brilhando, quanto à dele (aqui com um pouco de ingenuidade) de suportar o bebê no home office e com o apoio da mãe dela (um desafio que, sutilmente, começou a minar a própria estabilidade profissional do marido).

Em poucos meses ela estava representando a companhia em eventos internacionais – a mesma pessoa que relutava em aceitar o cargo. Cerca de um ano e meio depois, por entregas de qualidade e confiabilidade indiscutíveis, foi promovida a líder do time de educação, sendo responsável por uma equipe de oito projetistas e outros analistas.

A Lição da Excelência Silenciosa

E nesta semana, enquanto este texto é publicado, ela está em Belém, junto com a liderança da companhia, rodando eventos de educação financeira no contexto da COP 30. O título de líder de equipe, que ela nunca buscou, é apenas a consequência lógica da sua dedicação em fazer o que precisa ser feito.

Se você fizer a seguinte pergunta: se você nunca almejou sucesso profissional, por que você se dedica tanto? Acho que ela não saberia responder. O marido, que a conhece há 16 anos, acha que é coisa de terapia.

Mas o trabalho sempre vai ser um meio para outros objetivos e, por agora, são pelo menos 15 anos de escola particular. E Disney para 4 está caro!

Próximo
Próximo

O que aprendi em uma entrevista sobre entender (de verdade) o negócio do cliente